Poesia Permanente

"a forma de escrever é provisória, a poesia é permanente" Rosa Lia Dinelli

Hoje não amanheci ainda. Acabei de receber uma carta. Era um lembrete da ingrata de que o tempo está passando, mas ela ainda aguarda minha visita. Ela realmente não me visitará até que eu a procure.

Poesia escrita há uns meses e achada perdida por algum pc do trabalho!


Em todo esse emaranhado
Você se diz sábio e a salvo
Caminhe em minha direção
Tente tocar o meu rosto

É quando você estica a mão
E o joelho se dobra adorador
De toda essa prisão de alma
De corpo atado ao que se sente livre

Abra seus dedos e estenda a palma
Apedreje com um tapa
Acaricie com um beijo letal
Arranque todo esse laço envolvente

Tente tocar o meu rosto
Caminhe em minha direção
Você se diz a salvo e sábio
Em todo esse emaranhado.

Laços e desatos de vivência
Em que a direção caminha
Duos de necessidade particular
Que permeia e anseia outrém
A um, ao redor do não si

Tempestade peitoral de flagelo
Coro desperdiçado em sina
Três vezes mais o que se é
Onda arrudeia o permar
O par, o um, o querer ser.

Aqui nesta Terra é festa de cego. Só entra quem é da família. Cantando em braile!

Aqui nesta terra
Se está em festa
E a festa é de cegos
Só entra da família

Não se desaponte
Nem se desvie
Porque isso tudo
Você já ouviu falar

Toda tempestade
É solitária gota a gota
Onde a chuva se úne
No mesmo fio de água

Aqui nesta correnteza
É só caminho
E descaminho sem futuro
Não há p'ronde ir ou ficar

Porque na verdade
É uma festa sem convites
Onde quem quer entra
Basta fechar os olhos e cegar.

Quem é que fala deste lado do éter?
Aqui só se ouve o prescindível
Só se escreve o supérfluo
Só se lé o vulnerável

Qual dessas cartas vão rugir?
Até gritar na minha cara
Que nada corre contra o vento
Mas sempre tem como desviar

Quando os instrumentos vão parar?
É hora de colocar o anel corretamente
E ir à caça de todas as presas, cautelosamente
Porque o clima não favorece sempre

Queimar todos os papéis e não deixar registro?
A letra é imortal, nada destrói, nada apaga
Nem quado o vento assopra a areia
Pois elas sempre estarão na mente.

A madrugada me chamou. E ao chegar bem perto dela uma grade nos separou. Chovia. Apenas um lâmpada iluminava. Eu via alguns pingos de chuva. Uma pequena mariposa passou voando da escuridão em busca da luz. Da luz, fugia na escuridão um velho a meu lado. Dormia. Tão profundamente que foi incapaz de sentir minha presença e ouvir o bater de asas desesperador da mariposa. Ela lutava contra os tiros d'água rumo à lâmpada. O velho fugia temporariamente dos tiros da vida naqueles sonhos. Se é que ele sonhava... A mariposa morrerá em algumas horas; ou minutos, ou segundos. O dia é curto para a pobre mariposa que na madrugada busca a luz para refugiar sua ampulheta. Para o velho o dia é longo. E logo logo o dia amanhece. E por mais que faça sol, a chuva não vai parar. A mariposa voava até a lâmpada sem perceber minha presença. Eu saí de perto do velho sem que ele percebesse que eu estivera alí. Deixei apenas uma pegada.

Hoje vai ser difícil segurar o sono. E amanhã será difícil dormir. Porque ontem eu olhei para mim e vi que eu tenho apenas um umbigo. E que dele sai um cordão que se encontra ligado em minhas costas. Bem na medula. Dá até pra brincar de pula-corda.

Tudo o que é posse
Tudo o que é poça
A lama do pote
A voz que me ouça

Todo o tamanho
Todo o caminho
A força que ganho
O dedo no espinho

A mão que balança
A outra abre o olho
Tudo que avança
Tudo é joio no trigo que colho

Sempre que a gente
Se perde no passo
Há sempre um espaço
E outro pé a frente

Nunca se valha
Do tempo que corre
A estrada que morre
Por não ter escolha

Conte as pegadas
Que ficarama para trás
A escolha é voraz
Mas sevê as estradas.

Ele caminhava copiosamente em passos largos e demasiadamente firme. Sempre em frente. Como quem não tem direção. Alguns quilômetros o aproximavam do mar. E aquela rua reta que parecia não ter fim, sempre em frente. E ele a seguir o destino da rua. Passava cegamente por pessoas e animais pela rua, que olhavam assustadoramente para ele. Primeiro por suas feições cizudas; segundo por parecer que ele não percebia as pessoas na rua. Os animais instintivamente se desviavam de seu corpo veloz, mas algumas pessoas não tinham tanta destreza animalesca. Quanto mais se aproximava da praia, mais rápido seu corpo cortava o vento, cegamente; de olhos bem abertos a olhar o que sabia que lhe aguardava.

Chegou a pisar em dejetos de animais, ou de pessoas; eram dejetos. Hoje em dia é dificil, muitas vezes, separar os animais da humanidade. E era isso que o fazia andar sempre em frente. Pois essa rua foi o único caminho que ele encontrou para se salvar de tudo. O caminho do mar. Uma corrida contra o tempo. E cada vez mais rápido, seu corpo esquentava com a circulação que aumentava. Os olhos já avistavam a praia e o corpo a cortar o vento. O remédio já fazia efeito a distancia até a areia era pouca e o tempo menor ainda. Ao pisar na areia algumas pessoas observaram que sua velocidade diminuía e seu caminhar era cada vez mais trôpego.

Já pisava a areia úmida quando o corpo caiu na areia. Morto. O remédio na dose certa; no tempo certo; na distância certa. O que as pessoas não entendiam era como que, mesmo com o corpo imóvel no chão, sem vida, a vértebra continuava a cortar o vento velozmente por cima das ondas. Já em alto mar, buscando o infinito...

Hoje amanheci com as tristes chamas inocentes do desejo. Desde quando desejo é inocente, não faço a mínima idéia! Vai saber? Sei apenas que hoje não vou dormir. Como o desejo. Ele cochila, mas não dorme nunca.

Hoje amanheci com as faces em carne viva, dos efeitos causados pela cidade! Mas o Arvo Pärt assoprou em várias notas e vozes todas as chagas durante a madrugada em claro... Acho que dormirei em paz.

Hoje, antes de me deitar, ouvi um pedido brando proferido de forma mais branda ainda. Ela me pedia para que quando morresse fosse esquecida para sempre. Não queria visitas ao túmulo, muito menos pensamentos inoportunos visitando. Eu nunca neguei nada a ela. Não sei ao certo como amanhecerei amanhã...

Hoje levantei e passei pela rua em frente a uma escola fumando. Uma criança me pediu um cigarro e eu disse:"vai crescer primeiro". Ao passar por ela fumando, levei uma facada nas costas. As crianças de hoje andam bastante crescidas!

Hoje vi que o mundo mudou. Na verdade, ouvi que ele tinha mudado. Pois passaros cantavam na madrugada. E estava longe do raiar do dia.

Os dias são sempre dolorosos. É com o dia que se perde, se dispersa, se come, se envenena. São os dias que levam ao descontente desconhecimento. São eles que colocam de forma imposta a presença de seres que levam ao descaminho. As tarde são sempre convalescentes. Nelas os pensamentos se recolhem e vêm toda a desordem do dia. Toda a tempestade diante do sol passa a esfriar. E então chega a noite. É nela onde o conhecimento é extremo, pois a solidão é extrema. A companhia consigo mesmo traz o conhecimento e o autodomino. A falta da luz do dia faz com que seja vista a luz interior. Se absorve todo o repente do tempo ensolarado. Misturado com o ar frio da noite uma química produz orvalho. É a semente que está para crescer. Na noite é que se deve plantar, porque o sol está por vir e a madrugada é curta.

Hoje amanheci com uma coruja ao meu lado. Quando abri meu olho era uma gaivota mandando eu dormir de novo. E sonhar...

Engraçado como o velho Mané, após um diagnóstico ele esperava sempre pela visita da ingrata. Sentou por muito tempo perdido entre seus momentos de devaneios e lucidez. Dormia cada dia como se fosse o último aconchego ao travesseiro. Esperava eternamente a chegada do seu bilhete de partida para um mundo que ele próprio inventou. E de tanta espera, ela nunca veio visitá-lo. Não como ele esperava. O encontro foi acasual.

Eu tenho essa visita agendada. Meu bilhete para Pasárgada está nas mãos dela. Resta apenas uma notícia, um diagnóstico, para o encontro triunfal. É certo que esta visita está marcada e não é ela que vem me visitar. Eu que devo visitá-la. E muito em breve. O que não sei é se realmente irei cumprir o compromisso e pegar a passagem.

Suas palavras não me oprimem. Já essa intensa interiorização leviana leva meu âmago a paixões eternas. E sempre que preciso são retiradas categoricamente de prateleiras; de extrema organização cronológica e espaço reservado para arquivo-morto. E nenhum arquivo cristão. Mas há sempre algo que me toma de ansiedade quando revisitado por fantasmas pretéritos. Meu perispírito é uma casa mal assombrada.

Não me pergunto mais o porquê dessa opressão pulsar o meu sangue. Pois ela está no sangue, no corpo e na alma. Não há reflexos que expliquem de onde nada vem. E ao mesmo tempo é uma paz descer esses degraus e atingir todos os pavimentos dessa estante inexplorada por mim e tão permissiva ao toque de qualquer um que nunca vem.

A minha respiração são notas musicais em labaredas de tons graves e frios. É espada de sopro que invade perfuradora de todas essas remanescências fichadas. Meus membros aracnídeos mantêm pés no presente, no passado e principalmente no futuro; o qual nada se é galgado a longo prazo.

Alguém costumava dizer que era hora de Outrém acordar para a vida e deixar de ser criança. Os dois tinham nascido no mesmo dia; cada um de uma barriga diferente, realidades diferentes. Com todas essas diferenças, cresceram juntos. Alguém era quase igual a Outrém. Porém a vida deste segundo fazia com que seu escape fosse o mais arriscado de todos: aprender a viver arriscando de tudo. Para Alguém, Outrém cometia tantas loucuras para tal desbravamento da vida, que dizia que ele julgava-se Deus. Mal sabia Alguém, que Outrém encontrara-se com ele tantas vezes, que mais uma, seja da forma que fosse, seria apenas mais uma visita. E breve. Mas alguém não podia falar de Outrém como se soubesse tudo como Deus. Seria Outrém que brincava de ser Deus ou Alguém mais gostaria de brincar também?

A Rodrigo Garcia.

Hoje amanheci com a natureza e ela amanheceu com raiva de mim. O sol brilhava mais que o normal e todas as árvores da rua me davam cascudo.

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta". Guimarães Rosa


Essa é a vida que corre
É o tempo que freia a perna
A ponte que liga os mundos
Rio que corta tudo
Que anda sobre a luz
Faz tudo de repente
Dia após dia
A vida
Que corre
Corre
O mundo
Passo a passo
Faz tudo ficar para trás
Que nunca se apaga da vida
Tempos que definem passado, presente e futuro
O caminho das coisas que se tem de seguir
É o lápis que sempre procura o papel
E esse é o verso que tudo pára!


A Guimarães Rosa.

Sabe quando se pisa pela primeira vez naquele ladrilho recém colocado? É, eu também não sei. Mas deve ser como a primeira grande raíz que se fixa no solo. O primeiro mergulho de mar quando a onda bate ferozmente e atravessa todo o corpo... fica parte de você em todo aquele vasto oceano salgado. E de certo modo adoça a alma com pó de imã. Lá fica o pó negativo e em você o positivo: um chamando pelo outro... atravessando todas as linhas de tempo, clima, sol e lua. É fogo e é água. Até que em algum compasso da música tudo se reúne unindo os dois pós de pólos separados. E quando se junta torna-se outro estado de matéria. Neutraliza-se. Foi assim que me senti. A primeira vez que abri os olhos. Depois de eras de espera necessária e decisiva. Vi o mundo de todos os lados; de uma só luz. E sem sair do lugar.


A Fábio Viana.

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