Poesia Permanente

"a forma de escrever é provisória, a poesia é permanente" Rosa Lia Dinelli

Uma alma
Com cheiro acre de pôr-do-sol
Um som irmão nos tímpanos
E o oposto da barriga
Estarrecida num chão frio...
Um quarto

A câma de dois cômodos
Abraçada de um corpo só
Com as almas de seus sonhos
Deitadas obsessoras
Como versos
Como um prato de leite
Para gatos odiados

Um poste
Com seus sensores automáticos
À espera do manto negro
Que nunca chega
Que nunca vai...
A vida em eterna entre-noite
Até o fim da lua nova.

Tudo o que se sabe
É apenas que não sabe
Se ao certo o meu saber
É finito ou onda de mar

Eu não sei ao certo
Nem ao menos certo ponto
Desse erro de viver e saber tudo
Se só se sabe que nada sabe

Sei somente dos meus pés
Que não sabem p'ronde vão
Mas minha alma guia cega
Sabiamente como sabe cantar o sabiá

Eu não sei das notas nem das nuvens
Nem sei quantos filhos terei
Mas a caneta sei como segura
Não sei desenhar figura alguma
O meu destino eu desenho como sei
Pendurado nas janelas da minha cabeça
Deixo vento arejar o verão dos meus neurônios
E mergulho na etila do que sei
Só sei que nada vocês sabem
Mas, certo ou errado, os meus pés
Sei muito bem onde eu pisei
Onde eu piso e onde e até onde pisarei...

É carnaval para o corpo
Enquanto a alma se resguarda
Aguarda o passar do tempo
Enquanto a morte não chega
Enquanto o filho não vem

É folia e farinha na veia
Pois nas lápides do espírito
O peito petrifica em mar de gelo
A essência apenas em brisa de mar
A espera enfim perde o seu trono

É carnaval
Enquanto, enquanto
Aguarda
Enquanto é

É folia
Pois, o, a, a
É.

Haverá o dia em que te mato
Mas te mato de morte bem matada
Não de sono como desses
Quando em vez você acorda

Dou cabo até o fim da estrada
Sem virar curva nenhuma
Mas te mato até a última fagulha
Sem direito a cantar bis

Essas dormidas não são morte nenhuma
É só mais um fim, já já é começo
Eu não descanso enquanto existir
Um pedaço em mim dessa história toda

A cada ciclo é um novo homicídio
Da próximo te roubou para ser latrocínio
O que não dá é o tempo passar
E toda essa coisa ainda viver.

Eles haviam se visto a primeira vez há quatro anos em um show. Uma fila, uma corrida, uma parada, um sorriso, um adeus. A imagem daquele sorriso na memória. O começo de uma quase história. Por quase dois anos entre outras cenas repetidas como a primeira. Nunca verbos pulavam da boca. Apenas raios de olhares e peitos ofegantes. Nada que um mundo virtual não encurtasse essa distância, já tão curta. Ele o procurava. O outro o achou. Entre desejos e caracteres. Meses, após anos, o olho no olho recheado de palavras. Emoções como sempre pela metade. Ele alçava uma aureola no anelar esquerdo. O outro fazia com que ele tivesse duas meias histórias. A da aureola e a do outro.

Mais tempo. Mais espaço entre ele e o outro dentro de tão pouca distância. Um peteleco dado em alto mar. Tsunami. A aureola se quebra. Novas distâncias reunidas. Pôr-do-sol. Sentimentos tão recíprocos aflorados na ausência de palavras. A face se expressa aparentemente muito bem. E a distância tão presente sempre. Mesmo que tão perto. Sentados lado a lado e mais um pôr-do-sol. Sentimentos prontos cultivados como num jardim intocado. Regada pela distância imaterial. Uma astronave que leva ele pra longe do outro. E o outro surdamente se aproxima distante numa astronave do seguinte. Pensamentos que o trazem para tão perto. O retorno. O retorno. E o mundo virtual encurtando a distância. Um e-mail guardado. Sentimentos expressados em palavras concretas. O anúncio. O mistério. O segredo. Ciclones por quase um ano que emaranham as linhas que ligam ele e o outro. Tão pouco espaço e tão grande a distância.

E o sol se põe. E mais uma vez um encontro no mundo virtual aproxima todas as distâncias. O pôr de um novo sol. Tudo separado pela grama, pela altura e pelo movimento dos lábios que desfaziam compassadamente, como quem dança, os nós feitos pelos ciclones. Escuro. O tempo e a hora de se partir. Um nó ainda cego. O e-mail de outrora citado. Tanta especialidade. Ser tão especial era ele e o outro cantava isso como lobos ao vento frio de uma madrugada de lua cheia. O jantar. E o vácuo aberto entre ele e o outro. Uma distância nunca experimentada. Resguardo. Sentimentos ressequidos. Tempo... tempo... e a distância. Ele e o outro. O especial e o caos.

Muito tempo depois uma mensagem em sua caixa de entrada. Assunto: atraso na entrega de alguns anos. Remetente: o outro. Era um velho e-mail citado. Onde tudo era concreto. Negações, ojerizas, fora de desejo. Um pôr-do-sol de testes. E a confirmação do não querer. Sorte dele enxergar sempre a frente de tudo. Porque o outro não era só o outro. Era apenas mais um outro. Nada substancialmente diferente. Não diferente como ele. Ser tão especial era ele. Quanto ao outro, só mais um.

As cartas sobre a mesa
A mão da vidente
A vela
O vinho
As tintas da caneta

O mundo gira
Entre a montanha
O monge
A verdade
Os transeuntes da vida

Palavras ditas no vácuo
Escritos abertos no escuro
O surto
O contágio
A boca muda no pátio

Em teor felino
Guaradanapos dupla-face
Divino o enxague ariano
Ponto solto a outros pontos
Somente em uma parte
Eis a boa nova em ultimato!

O mundo é uma linha. Pontos em contrapontos. É uma gangorra. É bipolaridade. Em tudo, em seu mais completo verso e reverso, em seu avesso, uma contradição. As questões mais concretas e irrevogáveis permeiam de pontos questionáveis ao reverso. Um peito. Por que haverá de se ter um membro muscular, uma bomba, do lado esquerdo? Por que um só? Por que não no lado direito? Por que não nenhum?

Há este membro. Ele pulsa. Bombeia. Ele é matéria palpável, ainda que para isso haja a necessidade de rasgar a carne e afastar os ossos. Mas também é metafísica. É impalpável, é dor, sentimento, energia. Toda bomba gera energia. Energia gera movimento. Mas também torna-se estática. Há momentos nossos de extremos movimentos. Deste membro a outros membros do corpo. Mas há estática que faz divagações como esta.

O vazio é algo mais provável. Mal do mundo. Bem do mundo. Vagabundo de quem disser que não há vazio em si. Mesmo estando repleto de algo explicável ou inexplicável. Isto tudo reúne-se num pó que gera o vazio. O tudo e o nada. A linha e a agulha. Costura. É preciso de uma costureira. Há tantos remendos que pode virar um membro de fuxicos. Nem precisa pulsar, apenas ser. No mais uma colcha de retalhos basta. Os dias frios estão chegando e haja corpo para agüentar...

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