Poesia Permanente

"a forma de escrever é provisória, a poesia é permanente" Rosa Lia Dinelli

Manhã de um sol ainda a nascer. Quase cinco. Ele com seu livrinho de histórias infantis em francês. A rua quase deserta, se não fosse pelas raras pessoas que saiam para trabalhar como ele àquela hora. O ponto de ônibus vazio. A quietude da cidade devido ao horário, trazia pra perto de sua audição o cantar de pássaros misturado com o soprar do vento balançando os galhos das árvores na calçada que lembrava, ao menos de longe, o clima eterno de sua cidadezinha interiorana. Ele morava na capital há alguns anos. Já acostumado a todo o caos; toda a superficialidade das pessoas, a falta de amigos verdadeiros e principalmente do amor não fraterno. Amor este que sonhava desvairadamente anos atrás.

A cabeça vazia de qualquer pensamento que não o de chegar ao trabalho e dar início ao expediente que se estenderia até as onze horas. Correria para almoçar no mesmo boteco de sempre e tentaria voar para a faculdade; que por sinal estava para acabar e não via a hora que chegasse ao fim para fugir (ou ao menos tentar) de toda aquela podridão demasiadamente urbana. O sol custava a nascer. E a aparente manhã anoitecida causava-lhe um sono preguiçoso. O seu ônibus. Trinta e cinco minutos até o trabalho. Ele acenou com a mão. O veículo parou aparentemente vazio. Ele subiu e entrou totalmente desapercebido desferindo um bom dia cego, sem ao menos ver a cor do motorista. Passou pela catraca e sentou-se como se fosse o rei do ônibus: único passageiro. Seria único se não fosse pelo bom dia que ouviu após sentar. A voz madura e feminina surgia de trás. Ele olhou. Ela o olhou. Eles se olharam. Ela fez menção em sentar-se ao lado dele. Ele nem tinha percebido que havia se sentado num assento para dois. Ele se expressou afirmativamente com a cabeça. Ela se sentou ao lado dele. Já passava das cinco. O sol não havia nascido ainda. Tudo escuro. Ela olhou-o como quem analisa e percebeu em seu colo o livrinho francês de historinhas infantis.

- Este livro é antigo sabia?
- Não.
- Pois sim. Tenho um desse em minha estante da sala. Você estuda francês?
- Sim, estudo, sim. Ah... me desculpe. Bom dia para a senhora também.
- Não se incomode, filho. O corre-corre da cidade inibe cada vez mais nossa educação recíproca!
- Me desculpe...
- Tudo bem. Eu estudei francês faz tempo. Ainda me lembro de alguma coisa... Faz tempo que você estuda?
- Tem alguns meses, pego rápido.
- Na sua idade eu também pegava... Adoraria voltar a estudar francês.
- Nunca é tarde! Posso indicar a senhora a escola em que estudo.
- Você é um menino raro! Não vejo mais jovens assim como você hoje em dia.

Ele a olhou por alguns milésimos de segundo como se fosse uma eternidade o suficiente para entender que aquela senhora era tão rara quanto ele. O ônibus já havia feito metade do percurso para o trabalho dele. Eles já haviam conversado muito. Ele falado do pouco de sua vida. Ela falado de sua vida e muito mais. Ele havia contado de um tudo a respeito de seu pouco de vida. Contou inclusive que não tinha ninguém. "Pessoas raras merecem pessoas raras. E elas são tão difíceis de se encontrar... mas um dia se encontram... Faz dez anos apenas que me casei, esperei bastante, mas estou feliz como nunca estive" foi a última fala dela antes de se levantar e fazer sinal para descer: um pontos antecedente ao dele. Ele anotou rapidamente o nome da escola de francês e entregou a ela pedindo para que ela a procurasse. E o procurasse também para mais conversas agradáveis. O ônibus parou. Ela sorriu. Ele sorriu de olhos fechados. Ela desceu. Ele abriu os olhos e se levantou. O ônibus seguiu e ele fez sinal para descer.

O sol, enfim, nasceu de um parto espontaneamente natural e rápido. Uma luz radiante enfeitou o dia! O Ônibus parou. Ele desceu. Ele ainda sorria! Olhou para trás par tentar vê-la pela última vez. A rua completamente vazia e radiante do sol que acabara de nascer. Era ele, a rua e a sua sombra. De alma renovada, foi então que ele percebeu que estava só no ônibus. Ele havia acordado um ponto antes do seu.

A Dio

1 Reflexos Permanentes:

Muito bonito o encontro e a semelhança dos dois, além de um belo desfecho.
Até mais

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